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Recrutamento militar no Império era ‘caçada humana’ e mirava ‘vadios’

Fonte: Wikinotícias

14 de setembro de 2024

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O posto de soldado deixará de ser exclusivo dos homens. No mês passado, o governo federal anunciou que, pela primeira vez na história, as mulheres também poderão se alistar no Exército, na Marinha e na Aeronáutica. As primeiras recrutas entrarão nas Forças Armadas em 2026. O serviço militar feminino, porém, será voluntário.

A medida foi anunciada 150 anos depois da assinatura da lei imperial que determinou a primeira grande modernização do meio militar brasileiro. Trata-se da Lei 2.556, sancionada pelo imperador D. Pedro II em 26 de setembro de 1874, que mudou as regras de alistamento no Exército e na Marinha (a Aeronáutica foi criada em 1941).

De acordo com a norma, os novos recrutas deixariam de ser “caçados” pelas autoridades. Em vez disso, passariam a ser sorteados entre os jovens de 19 a 30 anos aptos para o serviço militar.

A lei de 1874 se originou de um projeto discutido e aprovado pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. O Arquivo do Senado, em Brasília, guarda todos os debates.

Os documentos da época mostram que a expressão “caçada humana” era corrente e não configurava exagero. Os jovens tinham pavor do serviço militar. Por isso, quando os recrutadores apareciam, eles fugiam e se escondiam.

No entender do senador Manuel de Assis Mascarenhas (RN), a “caçada” era um mal necessário. Ele discursou:

— Quem não se arrepiou com os imensos abusos que se praticam na execução das ordens do governo a esse respeito? Eu poderia falar com três anos que tive na prática de chefe de polícia e seis anos de presidente [de província]. Mas, senhores, ponhamos isso de parte. O recrutamento é um meio violento que a necessidade nos obriga a empregar, porque sem ele não teríamos gente nem para tripular a vigésima parte dos nossos navios de guerra.

O senador Holanda Cavalcanti (PE) pensava diferente. Para ele, a estratégia era humilhante e abusiva e deveria ser abandonada. Citando o caso da província do Pará, ele afirmou:

— A maneira pela qual se faz o recrutamento dos índios é uma verdadeira caçada. Eles, com muito justa razão, tratam de abandonar seus lares para se acolherem aos vizinhos. Grande parte das povoações da província está deserta.

Para evitar as fugas, os recrutadores costumavam chegar de surpresa às vilas.

Não se pode culpar os jovens pela repulsa ao serviço militar. As condições de vida no Exército e na Marinha eram desumanas.

Da tribuna do Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado imperial, o senador Montezuma (BA) disse:

— O prazo longo [eram vários anos de serviço militar] é avaliado como escravidão. Vossas Excelências hão de ter ouvido, quando o indivíduo é recrutado, dizer-se: “Vai ser escravo”. No nosso país, o povo julga que o recrutamento é uma espécie de escravidão.

O senador Fernandes Chaves (RS) denunciou:

— É preciso mencionar a crueldade com que alguns comandantes castigam os soldados com chibata, chegando a ponto de mandarem dar até que o castigado perca os sentidos e caia por terra. Ainda há pouco morreu um soldado do 6º Batalhão que levou 800 chibatadas.

Outro problema foi apontado pelo senador Saraiva (BA):

— Senhores, qual é o obstáculo imenso que faz com que os nossos concidadãos tenham horror à vida militar? É que um homem do Pará ou do Amazonas, um pescador que nunca deixou o grande rio, que não sabe o que é frio, de repente é recrutado e marcha para o Rio Grande do Sul, onde vai sofrer os rigores de um clima muito diverso daquele a que está acostumado e lá morre em pouco tempo.

Segundo Saraiva, esses longos deslocamentos ocorreram na Guerra do Paraguai (1864-1870) e produziram resultados catastróficos:

— O primeiro batalhão que veio do Pará, com 300 a 400 praças, todos índios belíssimos, meses depois só tinha a quarta parte da gente que o compunha. Morreu quase toda. Eis aí por que o alistamento voluntário tem sido difícil.

Além dos muitos anos de serviço, dos castigos físicos e da transferência para regiões remotas, pagava-se um soldo irrisório aos soldados, oferecia-se alimentação deficiente e o trabalho era extenuante.

O senador Saraiva afirmou que era preciso oferecer algum tipo de vantagem aos soldados para que, assim, o serviço voluntário se tornasse atrativo e não fosse mais preciso recrutar à força. Ele sugeriu:

— Se o indivíduo que se apresentasse a servir no Exército pudesse contar com o cumprimento da promessa solene de que ele iria aprender a ler, escrever e contar, isso atrairia muita gente para os corpos, porque a praça teria muito interesse em aprender a ler e escrever de graça, para depois aspirar a lugares superiores.

De acordo com o Censo de 1872, nada menos que 82% da população brasileira era analfabeta.

O senador Fernandes Chaves fez outras sugestões:

— Convinha que se aumentassem os soldos, de modo que guardassem alguma proporção com os salários dos trabalhadores. Convinha, mais, que se garantisse um futuro aos soldados contratados, como se pratica na Inglaterra e em outros países, que se lhes desse direito à reforma [aposentadoria] como têm os oficiais, que se criasse mesmo uma caixa econômica em seu favor. Com estas e algumas outras medidas, se poderia por certo obter muito melhor resultado no engajamento.

Quando foi ministro da Marinha, o senador Holanda Cavalcanti afirmou que os cofres imperiais não tinham dinheiro suficiente para melhorar as condições dos recrutas:

— Sim, reconheço que o recrutamento [para a Marinha] é um flagelo. Eu queria que não se violentasse ninguém com recrutamento, que tudo fosse feito por contrato. Mas a diferença está no dinheiro. Deem-me [o Senado e a Câmara] o dinheiro necessário para se realizarem os contratos, que eu prometo que não hei de violentar ninguém.

A “caçada humana”, contudo, não era generalizada. Escapavam do recrutamento forçado os ricos e também os pobres que estavam dentro da rede de proteção de algum chefe político local.

No caso dos ricos, a dispensa ocorria porque as leis do Império não exigiam o serviço militar dos jovens que estudavam ou se dedicavam a determinados tipos de trabalho formal. Eles também tinham a possibilidade de pagar uma quantia em dinheiro ao governo para livrar-se do recrutamento.

No caso dos pobres sob proteção, a dispensa ocorria porque quem operacionalizava o alistamento eram as autoridades locais, que evitavam convocar os seus empregados e afilhados políticos e direcionavam a mira recrutadora para os seus adversários.

O senador Holanda Cavalcanti discursou:

— O recrutamento é recomendado às autoridades policiais ou administrativas e não há mais outras regras para o desempenho dessa comissão do que o arbítrio dessas autoridades. Cada um de nós deve saber o que se pratica no recrutamento, as injustiças e favores que se fazem e o quanto é difícil resistir aos pedidos das amizades em favor de um ou outro recrutado. Cada um de nós sabe que a ocasião de um recrutamento é a ocasião de vinganças miseráveis. É ocasião de se vingar daqueles com quem teve suas quizilas [inimizades] e dizer: “Amigo, para o recrutamento. Você assente praça para a Marinha. Você, para o Exército”.

As presas preferenciais das “caçadas humanas” eram os pobres que não serviam a nenhum senhor poderoso. Como muitos deles eram desempregados ou faziam serviços informais ou esporádicos, eram considerados “vadios”.

Normalmente se tratava de escravizados que haviam conseguido a alforria. No Império, nem mesmo a liberdade da população negra liberta estava 100% garantida.

O historiador e professor Vinícius Campelo dos Santos, autor do livro A Revolta dos Rasga-Listas: a subversão do recrutamento militar na província de São Paulo (Dialética Editora), explica que foi nessa época que a palavra “praça” entrou no vocabulário militar:

— Como esses vadios ficavam nas praças, onde eram capturados para prestar o serviço militar, os soldados rasos, aqueles sem graduação, passaram a ser conhecidos como “praças”. É um termo que se usa até hoje. Os soldados brasileiros que lutaram na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, foram batizados de “pracinhas”.

Além da fuga pura e simples, os jovens recorriam a outros expedientes na tentativa de escapar do recrutamento militar. Um deles era o casamento. Nas discussões do projeto que daria origem à lei do sorteio militar de 1874, o ministro da Guerra, senador Junqueira (BA), pediu que essa isenção fosse retirada da legislação imperial:

— Se estabelecermos como isenção os casamentos, teremos de ver muitos deles prematuros e infelizes. Conta-se que durante a Guerra do Paraguai muitos moços, para se livrarem do recrutamento naquela época, casaram-se e, na pressa de contraírem esse enlace, não escolhiam muito, unindo-se até alguns a mulheres que tinham o duplo da sua idade, o que deu causa a muitas infelicidades.

Junqueira também pediu que se acabasse com a isenção concedida aos estudantes:

— Com esta vasta rede de isenções, neste país ninguém deixará de ter uma matrícula de qualquer instrução secundária.

Ele prosseguiu nas críticas às isenções exageradas:

— Para fazermos 2 mil recrutas, precisamos mandar prender dez vezes esse número, isto é, cerca de 20 mil cidadãos, para poder depois proceder à apuração.