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Audiência de Custódia: uma questão de direito

Fonte: Wikinotícias

17 de junho de 2016

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O papel dos instrumentos legais na manutenção dos direitos e liberdades do indivíduo

A audiência de custódia visa o controle de legalidade do procedimento da prisão em flagrante, não entra no mérito do que ocasinou a prisão. Esta verifica se o flagrante tem algum vício e se há necessidade do indiciado ser mantido em cárcere. A medida foi feita a partir de uma parceria entre o CNJ, o Ministério da Justiça e o TJSP (Tribunal da Justiça de São Paulo). O projeto tem como prerrogativa adequar o sistema judiciário e carcerário brasileiro a tratados e convenções internacionais. Como exemplo, o Pacto de San Jose, também conhecido como Declaração Interamericana de Direitos Humanos, assinado em 1969 na Costa Rica. Baseado na proteção e valorização dos direitos e liberdades do indivíduo, seu conteúdo fica claro nesta declaração do Supremo Tribunal Federal: “O Pacto baseia-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que compreende o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria e sob condições que lhe permitam gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos”.

O pacto foi ratificado e internalizado em 1992 no Brasil, mas mudanças concretas, que de fato garantiam a aplicação da prática de modo efetivo, ocorreram apenas a partir do início de 2015, com propostas que buscavam viabilizar e instituir a Audiência de Custódia, levando o preso à presença de um juiz em até 24 horas. O presidente do Tribunal de Justiça de Roraima, o desembargador Almiro Padilha, reforça a importância da consolidação da iniciativa: “...quando o Judiciário leva meses para essa primeira entrevista com o preso, isso pode causar um prejuízo irreparável à sociedade, ainda mais se não forem encontrados os elementos que exijam a prisão preventiva. ”

A audiência estabelece a apresentação do preso em um prazo de 24 horas. Este prazo começa a ser contado, após o término da elaboração do flagrante, no entanto, este pode se estender por até 7 ou 8 horas. Logo, o prazo de 24 horas não é extritamente cumprido. Ao ser realizada, esta verifica se há necessidade do indiciado ser mantido em cárcere. A prisão preventiva é considerada somente em última estância; o código penal prevê diversas medidas da prisão, como comparecimento mensal em juízo, fiança, recolhimento noturno e tornozeleira eletrônica.

As 24 horas foram determinadas pelo Provimento Conjunto seguindo o artigo 306, inciso primeiro do Código Processual Penal: “ Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011) ”. Desta forma, o mesmo período do encaminhamento do auto foi adotado para a apresentação do preso ao juiz.

O advogado Leonardo Debiazzi explica a importância da audiência e a importância do juiz que preside a audiência de custódia. “As audiências servem para o juiz ter o contato com o custodiado. Antigamente, havia o flagrante e era remetido apenas o inquérito do flagrante para o juiz. Ele não tinha esse contato pessoal. Existem coisas que não está dentro do inquérito, tem que perguntar. Nunca um boletim de ocorrência vai ter o descritivo: sofri uma violência policial”. O advogado e Vice-Presidente da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH), Jovacy Peter Filho, também enfatiza a importância do contato com o juiz em até 24 horas: “O contato físico permite até a análise da legalidade da detenção. A responsabilidade dele é de ser este garantidor de direitos. Vê se a detenção é proporcional, correta, se está dentro dos parâmetros processuais da legislação brasileira”.

Olhando o procedimento de modo mais detalhados, percebem-se questões e dilemas mais técnicos. Discute-se se o juiz presente na audiência deveria ser o mesmo que posteriomente daria prosseguimento ao processo. Da mesma forma, argumenta-se que o juiz responsável pelo controle de legalidade pode viciar seu entendimento. Em São Paulo, a aplicação das etapas do processo é realizada por juízes distintos; no entanto, em comarcas menores, um juiz é responsável pelos dois procedimentos e por questões adjacentes.

Por ser uma medida relativamente recente, grande parte das audiências são realizadas por defensores públicos, disponibilizados pelo Ministério Público. Ainda em um movimento de adequação ao prazo de 24 horas, as famílias envolvidas demoram a identificar os advogados. “ É um contato para orientar o mínimo que seja o custodiado, ou seja, explicar que não será discutido o que o indiciado fez e sim identificar a legalidade de manter preso”. Assim, Leonardo Debiazzi enfatiza que o contato rápido a sós entre o custodiado e o advogado de defesa, é de extrema importância para o entendimento do caso, para esclarecer se houve algum incidente de abuso ou violência, e até mesmo quanto tempo o indiciado passou dentro da delegacia de polícia. O advogado Guilherme Sampaio salienta a importância do contato na decisão que será tomada e nas medidas cautelares que poderão ser atribuídas:

“Além de conversar com o custodiado, ele ressalta os pontos que têm de ser colocados para a autoridade, porque, às vezes, a pessoa é leiga e é necessário direcionar o que será dito, pois são coisas relevantes para o juiz decidir”. O advogado faz um juízo técnico para ver se há alguma irregularidade e o juiz pode determinar o relaxamento de ofício, como por exemplo, inquéritos sem o depoimento do acusado.

“O advogado pleiteia a liberdade do seu assistido. Assegurar e demonstrar a desnecessidade da detenção. No Brasil, por força constitucional e isso quaisquer países civilizados, a prisão é sempre uma medida excepcional, nunca pode ser regra. Tem que ser exceção, até para que a gente dê a ela o valor que ela tem”, discorre Jovacy sobre o papel do defensor público, apontando de que forma o aprisionamento deve ser encarado.

A medida mais adotada pelo Ministério Público é a conversão em prisão preventiva, apesar da Audiência de Custódia já ser implementada. A escolha se deve principalmente a uma questão cultural da própria justiça brasileira e da resposta à sociedade. “Hoje em dia, 40% dos presos são provisórios. Não tem vaga porque passam dois anos esperando julgamento, por ineficiência do Estado. É necessário colocar uma pessoa no sistema carcerário? Além de não ter vagas, ele é precário, é dominado por facções. Vai colocar alguém que até então não é culpada no sistema carcerário. A prisão não é sinônimo de justiça”, coloca Guilherme. O advogado Debiazzi também ressalta a importância de se pensar as medidas cautelares e os riscos a que estão sujeitos os encarcerados: “O clamor público não é justiça. A finalidade da prisão é muito bonita, reeducar. Mas quando você entra em uma prisão o cenário é outro. É dar uma resposta para sociedade de que aquela pessoa foi retirada do convívio, entretanto, ele sai e vai para um cárcere. O presídio é infestado de facção criminosa, prendendo, você está dando armas para elas, você está oferecendo soldados”. Estes questionamentos ganham uma dimensão ainda maior levando em consideração que o Brasil apresenta a terceira maior população carcerária do mundo. Nestas condições a defesa da expansão do sistema carcerário é uma postura extremamente contraditória, tendo em vista o alto indicie de criminalidade e violência de um país com um sistema carcerário tão abarrotado.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), por meio de um mutirão carcerário voltado aos presos provisórios detidos, no Centro de Detenção Provisória I de Guarulhos, entre os meses de janeiro e julho de 2015, ilustra bem quem são estes presos e qual sua situação. 57,3% têm entre 8 e 24 anos, 66,6% são pretos e pardos; 46,2% tem o ensino secundário completo e 43,7 % até o ensino médio; 41,6% tem renda entre 1 salário mínimo e 1,5, enquanto 47,5 % possuem um ou mais filhos; 52,8% são responsáveis pelo sustento destes, e por último, 58,3% não possuía antecedente criminal.

O IDDD ainda traz dados sobre a circunstância da prisão dos atendidos. 80% não sabiam que tinham direito a permanecer em silêncio; 77,7% não foram informados do direito de se ter um advogado (nos boletins de ocorrência constava que os presos haviam sido informados sobre todos os seus direitos), 77,4% não haviam sido informados da possibilidade de entrar em contato com algum familiar; 84,7 % não tiveram o direito de ler os documentos que assinaram na delegacia, não sabendo seu conteúdo; 19,8% não sabiam por qual crime haviam sido presos; 48,5% disseram que sofreram agressões físicas durante a abordagem policial, no momento do flagrante, ou na delegacia; 74,9% foram presos pela polícia militar e 40% sofreram algum tipo de ameaça.

“A ideia da audiência de custódia é conferir mais confiança ao sistema de justiça criminal. Um sistema de justiça criminal altamente punitivo tende a ser um sistema desacreditado, a partir do momento que, sobre o pretexto de utilizar o sistema para assegurar a vida em sociedade a partir do medo, você deixa de gerar uma cultura de respeito às normas”. Jovacy vê um aspecto de subversão no sistema brasileiro, ao retratar o caráter punitivo, assim a audiência viria para minimizar esse aspecto. Ainda complementa: “ Isto tem uma matriz histórica. Se pegarmos o livro do Thomas Hobbes, ‘O Leviatã’, ele já vai dizer que o sentimento da sociedade é muito mais de punição do que de absolvição. Havia uma crença de que a justiça se faz a partir de condenações. Essa constatação de que justiça é sinônimo de condenação está equivocada. Há um falso sentimento de impunidade, pois nós somos um país altamente punitivo”.

“A solução é mais social. Os principais crimes que ensejam uma prisão preventiva são aqueles contra o patrimônio. Falta emprego, aumenta a criminalidade; aumenta a crise econômica, aumenta a criminalidade. Tem que investir em uma política criminal melhor, investir na educação. Isso contribui de forma determinante para se uma pessoa vai delinquir. Se ela tem emprego isso reduz”, descreve Guilherme. Ele descreve de que forma a população carcerária reduziria e o que é determinante para que infrações sejam cometidas. O presídio não seria para ele uma saída.

Mesmo amplamente difundidas, as audiências de custódia ainda enfrentam dificuldades para ser implantadas plenamente no país. Desde de 2011, o Projeto de Lei do Senado (PLS) número 554, que prevê que ela seja incluída no Código Penal, está para ser votado. Hoje, ela é regulamenta por um provimento do TJ e por uma resolução no CNJ. A mudança permite, entre outras alterações, a explicitação do procedimento ideal a ser adotado, a reavaliação da estrutura necessária para a aplicação da prática e ponderação sobre questões como a insuficiência estatal para esta transformação na estrutura judiciária.

Outro desafio para o sucesso da iniciativa da Audiência de Custódia é a resolução de pequenas deficiências em seu funcionamento. Como exemplo, podemos destacar a participação dos custodiados na audiência algemados. Poucos são os advogados que pedem a remoção das algemas. Sobre o assunto, Leonardo declara: “Isto é muito chocante. Qualquer pessoa, ao ver outra algemada, independente do que ela fez, se assusta”. O Supremo Tribunal Federal estabelece, por meio da 11 ª súmula, o uso de algemas somente em casos excepcionais. “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

Soma-se ao fato anterior o não questionamento de alguns juízes sobre questões importantes e significativas, como por exemplo, se a mulher custodiada está grávida, e irregularidades podem ocorrer. Neste caso, o Artigo 318 do Código do Processo Penal prevê substituição da prisão preventiva pela domiciliar em casos de gestantes, decisão que ainda se estende para idosos com mais de 80 anos, pessoas extremamente debilitadas por doenças graves, alguém a que seja imprescindível cuidados especiais, menores de 6 anos ou com deficiência, mulheres com filhos de até 12 anos e homens unicamente responsáveis pelo cuidado dos filhos de até 12 anos.

“Deve-se desenvolver uma estrutura para que a audiência de custódia seja aplicada, tanto em prédios, departamentos, repartições, pessoal. Acredito que esse seja o maior problema, tanto de juízes, promotores, defensores, policiais, viaturas. Demanda uma estrutura maior”, o advogado Guilherme Sampaio. aponta os aspectos importantes para maior efetivação da audiência e sua efetivação de forma plena, para que seja feita de forma eficaz". Debiazzi argumenta ainda, que para o aumento da efetividade da prática, deve se garantir a aplicação de alguns aspectos negligenciados: “ Os magistrados estão podados. Em São Paulo, não foi estabelecido e nem fornecido para o Tribunal de Justiça a tornozeleira eletrônica, que poderia ser uma das cautelares”. Segundo ele, a Secretaria de Segurança Pública aponta o Tribunal como o órgão responsável pelo fornecimento, enquanto o Tribunal atribui a responsabilidade à Segurança Pública.

O processo de instalação de audiência de custódia pelo Brasil tem sido feito de forma gradual. Para Guilherme, este fator deveria ter sido pensado logo no início do processo de introdução da Audiência de Custódia, uma vez que fornece benefícios para uns, pois nas regiões em que ainda não foi implantada os presos não conseguiriam ter acesso á audiência. A universalização da iniciativa no território brasileiro, igualitariamente, é fundamental, uma vez que o Processo Penal atua em âmbito nacional.

Apesar de ser uma proposta não implementada em sua totalidade, os efeitos das audiências já podem ser percebidos, após um ano e quatro meses do início do projeto. O que se observa, principalmente, é a ação já sendo tomada em diversos estados do Brasil trazendo resultados positivos para o sistema carcerário. Em uma matéria para o portal JusBrasil, Israel Evangelista diz que, sete meses após o programa ser lançado, o número de prisões provisórias no estado diminuiu em 45%. Além disso, uma notícia sobre Audiência de Custódia, no site do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, mostra que, em Belo Horizonte, “até o início do mês de março de 2016, 5.340 pessoas foram submetidas às Audiências de Custódia. Dessas audiências, 42 resultaram em relaxamento da prisão e 255 em liberdade provisória plena. O índice de concessão de liberdade provisória com imposição de alguma medida cautelar passa dos 40%”, revelando um avanço positivo. A adotada por mais de dez estados, efeitos diretos e indiretos da Audiência de Custódia revelam transformações significativa. Um exemplo é o estado de Pernambuco. O programa já foi implementado em cidades como Recife e, até 4 de julho, como informa Ricardo Novelino, em declaração para o portal G1, “mais sete polos regionais passarão a sediar audiências de custódia em Pernambuco (Jaboatão dos Guararapes, Olinda, São Lourenço da Mata, Cabo de Santo Agostinho, Caruaru, Garanhuns e Petrolina, no Sertão) ”. De acordo com a notícia, o programa tem mudado bastante a situação carcerária do estado.

“Desde agosto do ano passado, o Judiciário realizou em Recife 2.549 audiências de custódia. Nesse período, foram feitos 1.587 pedidos de prisão. Ao todo, 902 detidos e apreendidos deixaram de ser encarcerados, evitando, assim, a piora no quadro dos presídios do estado. Isso representa cerca de 35% do total dos casos”.

Assim, como revelam os exemplos, a aderência à medida resgata uma visão um pouco mais humana sobre os indivíduos infratores que, muitas vezes, são levados injustamente, seja por engano ou corrupção e irregularidade no sistema. Evitar estes episódios, reduzindo os casos e evitando estas prisões, evidenciam que o programa é positivo tanto em relação ao combate da injustiça quanto como solução à má supervisão e à superlotação dos presídios do Brasil. Principalmente se considerarmos que a maioria dos indivíduos afetados já convivem com outros sistemas de opressão, além de partilharem uma condição de marginalização.

A adoção da Audiência de Custódia assegura o direito de liberdade do cidadão. Nas palavras de Jovacy:

“Nós vivemos em um país que fez a opção política de ser um país democrático e de direito, e um país democrático e de direito tem como fundamento a liberdade dos seus cidadãos. Liberdade de pensamento, de credo, de consciência, de manifestação política, de ir e vir. A liberdade de ir e vir é uma das facetas da liberdade, a mais importante. Nós precisamos assegurar que essa liberdade só venha a ser cerceada, quando efetivamente for necessário para a manutenção do tecido social. Fora dessas hipóteses, nós não podemos cercear a liberdade de ninguém, seja por motivos de cor, credo, orientação sexual ou de conduta”.

Fontes