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Fumaça impõe “experimento natural” na Amazônia

Fonte: Wikinotícias

1 de outubro de 2024

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De janeiro até esta segunda-feira, 30 de setembro, foram registrados no estado do Amazonas mais de 22 mil focos de fogo das queimadas – é o pior número em 26 anos do monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que começou em 1998.

A fumaça das queimadas – prática de madeireiros e fazendeiros após os desmatamentos ilegais da floresta ou das áreas agropecuárias, além dos incêndios criminosos em áreas de conservação e em terras indígenas -, emite gases tóxicos como o gás carbônico (CO2), metano (CH4), monóxido de carbono (CO) e nitroso de oxigênio (N2O). Esses gases também contribuem no processo de aquecimento global permanecendo décadas na atmosfera.

Além das queimadas, a estiagem extrema que afeta o Amazonas está na iminência de bater um novo recorde da seca, em menos de um ano, com as águas dos rios baixando e evaporando, transformando a paisagem dos leitos em bancos de areia.

Hoje, o nível do rio Negro chegou a 13,19 metros e está a 0,40 centímetros para alcançar a marca histórica de 2023, quando a cota baixou para 12,70 metros, um recorde em 121 anos de medição na estação hidrológica do Porto de Manaus, que iniciou em 1902.

Mais câncer, infarto, bronquite

Diferente de um vírus, como a Covid-19 que provocou uma pandemia mundial, a fumaça das queimadas não é evidente em exames corriqueiros, mas a longo prazo gera manchas evidentes, enfisema, bronquite e câncer nas pessoas. O câncer, em um fumante, demora em torno de 20 a 30 anos para aparecer e seu pico é na faixa etária dos 50, mas dependendo da genética da pessoa ele pode não depender desse tempo de latência.

“Hoje a maior causa de câncer em não fumante é poluição do ar. É algo em escala global, de 10 a 20% dos novos casos de câncer, principalmente em mulheres não fumantes, são atribuíveis à poluição do ar no mundo”, explica o médico Paulo Saldiva.

Outro ponto é que há possibilidade de diferenciar a origem do câncer. “Esses cânceres eles têm uma assinatura molecular distinta do câncer do tabaco, o tabaco que muda as mutações de genes são um pouco diferentes dessa que dependem de uma via inflamatória, então sim, a poluição do ar é um agente promotor de câncer certamente de pulmão e provavelmente de bexiga, os mesmos que o cigarro dá”, afirma o especialista em patologia.

Além de câncer, outras infecções respiratórias se instalam e podem surgir doenças cardiovasculares com um pulmão enfraquecido onde os brônquios se fecham [tubos por onde passa o oxigênio] e dificultam a passagem do sangue bombeado pelo pulmão. “O coração tem que bater contra um pulmão inflamado”, ressalta o médico.

O fechamento dos brônquios, que ocorre com excesso em pessoas asmáticas, acaba acontecendo em quem respira fumaça intensa. “Quando você fecha o brônquio o vaso correspondente do lado do brônquio também fecha para que o que entrou não seja mandado para fora do corpo, espalhado”, complementa.

“Se o coração tiver insuficiência cardíaca ou uma doença crônica pode significar que ele não aguente, ele já está ali no limite”, ressalta Saldiva.

Outro fator que acontece no processo inflamatório é um aumento na coagulabilidade do sangue. A umidade do pulmão, segundo o médico, tem que estar na ordem dos 90, 95%. Com a baixa umidade do ambiente devido às queimadas e seca, o pulmão precisa compensar e gastar mais água, fazendo com que haja uma concentração maior de sangue.

“Isso significa maior risco de trombo, se o trombo se faz de uma coronária ou numa artéria cerebral, pode dar complicação, se pegar numa artéria coronária que é do coração dá infarto do miocárdio, se for num vaso cerebral dar infarto cerebral”, diz.

Há ainda a questão da ventilação nasal. Saldiva diz que quem bebe cerca de dois litros de água por dia, ventila em média por dia 1.400 litros de ar em 24 horas, o que é muito para se “consumir” de uma qualidade do ar em nível “péssimo”.

“O que entra no pulmão tem uma velocidade de absorção comparada ao do intestino, é quase como se fosse uma injeção endovenosa, então a superfície do pulmão é em torno de 100 metros quadrados, é como manter uma quadra de tênis limpa com essa fuligem caindo em cima, as pessoas que têm cortina, que tem uma superfície muito menor deve estar sujando, o chão das casas deve estar sujo com essa fuligem, imagina o pulmão com 100 metros quadrados”, conclui.

Viver o “normal” no caos climático

Na fumaça das queimadas é também encontrado o material particulado (PM2,5), que é um conjunto de poluentes que se mantém suspenso na atmosfera devido ao seu pequeno tamanho.

A OMS diz que o PM2,5 é capaz de penetrar profundamente nos pulmões e entrar na corrente sanguínea, causando impactos cardiovasculares, cerebrovasculares (AVC) e respiratórios. A organização estabelece que a concentração anual média de material particulado não deva ultrapassar o limite de 5 µg/m³ (microgramas por metro cúbico) para minimizar riscos à saúde. A média de 24 horas para este poluente é de 15 µg/m³.

Na sexta-feira (27), o nível da qualidade do ar em Manaus amanheceu “muito ruim”, com índice de 92.7 µg/m³, de acordo com o Sistema Eletrônico de Vigilância Ambiental (AppSelva), da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Antes, dia 19, o nível da poluição chegou a marcar péssimo com 159 µg/m³. Uma chuva que caiu neste fim de semana amenizou a fumaça. A qualidade do ar está hoje em 29.7 µg/m³, mas longe do recomendado pela OMS.

Mas, para os manauaras, é preciso continuar vivendo como se o fim não fosse uma realidade próxima, então a população continua no vai e vem do dia a dia, no Porto de Manaus, mesmo correndo mais riscos, como é o caso de Ana Cristina Soares, de 44 anos, moradora da comunidade Bom Retiro, que fica no baixo rio Amazonas. Ela conta que fez um transplante de medula óssea e precisou ir para Manaus cuidar da saúde.

“Eu tenho muito cuidado usando máscara direto e eu indico às pessoas que usem máscara para não estar pegando vírus e passando para outras pessoas também, que tenham muito cuidado mesmo. Eu sinto que a minha garganta está um pouco pesada por causa da fumaça mesmo”, diz Ana.

Nos tempos de crise da fumaça, é a “Banca da Japonesa”, localizada no mercado Adolpho Lisboa, a mais procurada para o tratamento de doenças pela medicina tradicional em Manaus. O movimento é grande e não para, e aumentou mais ainda com a procura de produtos que minimizem os efeitos da fumaça.

Segundo Angela Takeda, empreendedora da banca, alguns produtos mais comprados pelos manauaras são: colírio para os olhos, xarope e remédio para o pulmão. Ela afirma que as pessoas, principalmente os ribeirinhos, chegam relatando ardência nos olhos, dificuldade para respirar e secreções nas vias aéreas.

“Geralmente são os ribeirinhos os mais afetados, e o pessoal da cidade mesmo, na cidade você abriu a janela e já dá de cara com a fumaça, então o pessoal está com problema de visão, está com problema de pulmão”, explica.

Ela acredita que se nada for feito, a saúde das pessoas tende a só piorar e a procura aumentar. “Enquanto nossos dirigentes não tomarem providências, a tendência é ir para baixo, e afundar cada vez mais. Em vez de estarem brigando por causa de eleição, eles [governantes] deveriam priorizar a causa dessa fumaça aí porque com certeza tem gente grande por trás disso”, diz Takeda.