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Estudo analisa enchentes de setembro de 2023 no RS para mapear vulnerabilidade de municípios a desastres ambientais

Fonte: Wikinotícias

8 de agosto de 2024

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O Guaíba, que banha Porto Alegre, alcançou nível histórico de 5,3 metros

Inaugurada em 1930, no noroeste do Rio Grande do Sul, a ponte que cruza o rio das Antas para conectar os municípios de Farroupilha e Nova Roma do Sul rapidamente se tornou um símbolo para a região. O projeto e a obra, que levou dois anos para ser completada, eram, por si sós, motivo de orgulho, tanto que, originalmente, a construção recebeu o nome do antigo presidente da província: ponte Getúlio Vargas. Com o passar das décadas, a Ponte de Ferro, nome pelo qual ficou consagrada, passou a ser utilizada também como cenário para ensaios fotográficos, e a servir de base para a prática de esportes radicais. Porém, mesmo sua estrutura reforçada, que atravessou mais de nove décadas, não suportou as fortes chuvas que se abateram sobre o estado gaúcho em setembro de 2023. No dia 4 daquele mês, ela foi levada pela força da correnteza das águas do Rio das Antas.

Menos de 24 horas após a destruição da Ponte de Ferro, a enchente do rio das Antas alcançou o rio Taquari. O Taquari é um grande rio, economicamente importante para o estado, que desce no sentido norte-sul até a cidade de mesmo nome e drena as águas de 98 municípios. Quando a enchente do rio das Antas alcançou o Taquari, o nível das águas deste último atingiu 29,92 m. Essa medida é quase 11 m acima do limite de inundação. Essa elevação das águas do Taquari impactou no total 107 municípios, a maioria localizados no Vale do Taquari. Desde o dia 1º de setembro, os municípios da região já sofriam com as fortíssimas chuvas que desabavam: os níveis de precipitação chegaram a exceder os 300mm.

As enchentes que ocorreram em setembro de 2023 resultaram em 54 mortes e mais de 400 mil indivíduos afetados, segundo o último boletim divulgado pela Defesa Civil do RS. E em algumas cidades, como Muçum, Roca Sales e Lajeado, o impacto e a destruição causados pelas chuvas extremas estavam só começando. Estes municípios voltariam a enfrentar os mesmo desafios em novembro de 2023 e em abril de 2024, totalizando três episódios em menos de um ano – sendo que as enchentes de abril de 2024 ganhariam o triste título de maior desastre climático da história do Rio Grande do Sul.

Já há claras indicações, sustentadas por grupo como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de que eventos climáticos extremos tendem a ser uma realidade cada vez mais recorrente nos próximos anos. E, além de mais frequentes, devem ser tornar mais intensos. Visando dotar o Brasil de capacidades para a gestão de riscos de desastres decorrentes de eventos extremos, e, em especial, para monitorar e produzir alertas sobre riscos de desastres, foi criado em 2011 o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Desde então, além do monitoramento e da emissão de alertas, a instituição tem sido responsável por promover o desenvolvimento da tecnologia e do conhecimento científico a fim de melhorar a qualidade dos alertas, bem como subsidiar ações de prevenção e mitigação de desastres.

Após as chuvas de setembro de 2023 no Rio Grande do Sul, um grupo de pesquisadores liderado por Regina Célia dos Santos Alvalá, pesquisadora do Cemaden e docente do Programa de Pós-Graduação em Desastres Naturais, fruto de uma parceria entre o Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp, campus de São José dos Campos, e o Cemaden, debruçaram-se para avaliar dados meteorológicos e socioambientais com o objetivo de compreender as causas e as consequências do desastre. Na pesquisa, publicada na revista científica International Journal of Disaster Risk Reduction, o grupo constatou que as populações mais vulneráveis eram aquelas de baixa condição socioeconômica, que viviam em moradias de infraestrutura precária. E, em especial, aquelas que residiam em municípios pequenos, mais dependentes da atividade agrícola.

“Uma gestão eficaz de riscos de desastres exige uma compreensão ampla de todos os processos associados”, escrevem os autores do artigo, “incluindo avaliação das vulnerabilidades, capacidades e exposição de indivíduos e bens, bem como as características das ameaças e do ambiente.” Daí o interesse do grupo de estudiosos por identificar quais segmentos da população que se mostram mais suscetíveis, ou mais expostos, aos desastres. A partir desta informação, será possível formular políticas públicas mais eficientes, que levem em consideração a realidade daqueles que mais sofrem com as enchentes.

Com o objetivo de entender o amplo espectro da população afetada, o grupo combinou e analisou diferentes características dos municípios e das populações atingidas no desastre de setembro de 2023. “Um dos principais focos da pesquisa foi analisar os diferentes aspectos relacionados à vulnerabilidade para entender quão preparadas as cidades estavam para lidar com o risco de desastres, uma vez que as enchentes impactaram mais de 100 municípios, culminando em mortes em 14 deles”, diz Alvalá.

Para isso, o grupo usou dados obtidos no Censo Demográfico de 2010 do IBGE, o último disponível até aquele momento, e procurou desenvolver avaliações multifatoriais que encampassem aspectos sociais, econômicos, profissionais, de infraestrutura e institucionais das cidades impactadas.

Na dimensão social, por exemplo, foram consideradas informações referentes ao grau de escolaridade e alfabetização da população. No aspecto econômico, foram considerados dados como os graus de pobreza ou de vulnerabilidade econômica. Na esfera profissional, analisaram-se os diferentes perfis e campos de trabalho da população. No quesito infraestrutura, o foco recaiu sobre fatores como a disponibilidade de serviços de defesa civil e seus respectivos equipamentos. Por fim, na dimensão institucional, foram levantados dados sobre a existência de diferentes planos de ação para desastres e ferramentas de mitigação.

As análises mostraram que os municípios que apresentam os mais elevados níveis de vulnerabilidade são caracterizados por abrigarem populações de baixa estração socioeconômica, caracterizadas como em situação de pobreza ou em condições vulneráveis à pobreza. A esse quadro somam-se a baixa escolaridade e o fato de que a maior parte das pessoas afetadas habitavam casas com pouca infraestrutura.

Os pesquisadores também identificaram uma correlação entre o porte das cidades e a magnitude dos impactos. Os municípios cuja população ultrapassava os 100 mil habitantes, por exemplo, foram classificados entre os menos vulneráveis. Em parte, isso se deve ao maior desenvolvimento em sua infraestrutura urbana, porém também mostrou-se relevante o fato de que cidades maiores tendem a ter uma atividade econômica mais diversa, e dificilmente são dependentes de apenas um setor da economia.

Uma realidade bem diferente é encontrada nos pequenos municípios do interior do Rio Grande do Sul, cuja população não ultrapassa os 10 mil habitantes. Neles, o perfil mais comum combina infraestrutura precarizada e forte dependência econômica do setor agrícola, o que os torna extremamente vulneráveis aos desastres ambientais, em especial quando o resultado é a destruição das lavouras.

Entre as cidades impactadas pelas enchentes de setembro de 2023, 47, ou quase metade do total, se mostraram dependentes da atividade agrícola, e contavam com uma população inferior a 5 mil habitantes.

Já em 2022, alguns dos mesmos pesquisadores que assinam o recente artigo, Alvalá entre eles, publicaram no mesmo International Journal of Disaster of Risk Reduction um levantamento da vulnerabilidade e capacidade de redução de riscos de desastres de aproximadamente 300 municípios brasileiros. Eles ficam nas regiões Sul e Sudeste, e abrigam populações inferiores a 100 mil habitantes. Aquele trabalho apontou a classe de trabalhadores rurais, que sabidamente integram as camadas socioeconômicas de menor renda do país, entre as mais suscetíveis a riscos e eventos climáticos extremos. Apesar disso, ao analisar as políticas públicas e projetos dos municípios atingidos pelas enchentes de setembro passado, o grupo constatou que 30% das cidades estudadas não tinham como prioridade políticas públicas ou iniciativas de apoio para produtores agrícolas.

Segundo o artigo, a implementação de tais políticas, aliada a melhorias na infraestrutura, pode ser um fator crucial para diminuir a vulnerabilidade das populações rurais. Isso é ainda mais evidente no Rio Grande do Sul, um estado cuja economia tem forte base na agricultura, e onde praticamente 45% do produto interno bruto vem de cidades com menos de 10 mil habitantes, como apontado pelo Atlas Socioeconômico do estado.

A pesquisa também revelou que, apesar de quase todos os municípios contarem com Coordenadorias Municipais de Proteção e Defesa Civil (COMPDECs), que respondem pela gestão das ações de proteção e de defesa civil, os órgãos careciam de melhorias estruturais, de equipamentos e de orçamento. Além disso, entre os 14 municípios que registraram mortes, em nove não havia sequer um destacamento do corpo de bombeiros. Entres estes nove municípios estavam aqueles dois considerados como os mais afetados: Muçum e Roca Sales.

Ações na área de infraestrutura são essenciais para minimizar os impactos. Porém, além de assegurar a presença de uma equipe com treinamentos atualizados em defesa civil, outras diretrizes devem orientar, continuamente, as políticas municipais e estaduais.

“É preciso preservar as políticas públicas de coleta de lixo, realizar obras de contenção das encostas, e impedir o desmatamento de topos de morros e matas ciliares”, diz Alvalá. “Em outra área, é necessário determinar abrigos estruturados para receber pessoas em caso de desastres. Num contexto de redução de riscos, esses devem ser os investimentos prioritários. E os recursos para financiá-los devem ser perenes e contínuos. Em especial, quando se leva em consideração que estamos observando eventos mais frequentes e mais intensos”, diz ela.

No Brasil, dados da Confederação Nacional dos Municípios mostram que, entre 2013 e 2022, 93% das cidades brasileiras foram afetadas por um evento hidrometeorológico que culminou no registro de um estado de emergência ou calamidade pública, devido a tempestades, inundações, enchentes ou alagamentos urbanos.

O Rio Grande do Sul foi o estado mais castigado entre 2023 e 2024. Após as chuvas de setembro de 2023, no mês de novembro do mesmo ano novos eventos impactaram 138 municípios, dos quais vários situados no Vale do Taquari; e, novamente, em abril de 2024 o Rio Grande do Sul vivenciou o maior desastre da história do estado, que atingiu 471 municípios gaúchos (quase 95% de todas as cidades) e deixou um rastro de mortes, desabrigados e prejuízos que chegaram à casa dos bilhões de reais.

E, como relatado anteriormente, cidades do Vale do Taquari, como Muçum, Roca Sales e Lajeado estiveram entre os municípios que sofreram com a destruição causada pelas três enchentes. Ou seja, nem o fato de terem atravessado duas experiências de destruição em poucos meses serviu de alerta para mobilizar as autoridades no sentido de otimizar a preparação para enfrentar eventos futuros.

“Aquilo que vimos acontecer em setembro com os municípios do Vale do Taquari deveria, de alguma forma, ter sido assimilado pelos tomadores de decisão, a fim de que as cidades se preparassem para novos eventos. Uma vez que, reiteramos, eles estão acontecendo com maior frequência e intensidade”, destaca Alvalá.

Frente a essa realidade, entidades regionais do Vale do Taquari elaboraram a Carta do Vale do Taquari, com propostas para mitigar os efeitos climáticos sobre a Bacia Taquari-Antas. Dentre os apontamentos estão a reorganização das defesas civis, planos de contenção, estudos sobre a bacia hidrográfica Taquari/Antas, melhorias nos sistemas de monitoramento, prevenção e alertas, além de projetos de construção de estruturas para reservar água e reduzir a velocidade das enchentes.

Alvalá completa que, para que as medidas de gerenciamento, proteção e mitigação sejam efetivas, é necessário, também, o envolvimento da sociedade civil e a realização de atividades que divulguem informações sobre como agir em casos de alertas e desastres. “Em setembro de 2023, o Cemaden emitiu 40 alertas para a região, aproximadamente dois dias antes do pico do evento”, conta a pesquisadora. “ Mas dispor apenas de bons alertas não é suficiente para reduzir os riscos.”

Além dos alertas emitidos pelo Cemaden, o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul denunciou em nota que a queda da Ponte de Ferro em Farroupilha, no dia anterior às enchentes, e outras ocorrências como a precipitação acumulada de 280 mm desde o dia 1º de setembro e o aumento exponencial da vazão da Usina Hidrelétrica Castro Alves já eram indícios confiáveis do evento que se aproximava.

Segundo a nota, assinada por nove professores da federal gaúcha, “a cadeia de ações de prevenção, preparação e alerta dos impactos da inundação não funcionou adequadamente. As pessoas permaneceram nas suas casas até o instante em que já era tarde demais para sair. Isso pode ter acontecido por uma série de motivos. Talvez as pessoas não soubessem que moravam em local perigoso, ou permaneceram porque não foram avisadas, ou ainda porque consideraram que os avisos não tinham credibilidade”.

Para Alvalá, a redução do risco de desastres demanda investimentos constantes nas diferentes frentes, e que resistam às mudanças de governos. Apesar de ser um longo caminho, algumas cidades estão se estruturando para lidarem com a realidade de eventos climáticos extremos. Entre elas pode-se citar o município de Petrópolis, RJ, que, em janeiro de 2011, foi impactado por fortes chuvas que levaram a enchentes e deslizamentos. O evento culminou em mais de 900 mortos e mais de 30 mil pessoas desabrigadas. “Desde então, a cidade tem buscado investir em melhores preparações para lidar com os eventos extremos”, diz Alvalá. Após as chuvas fortes que atingiram a região em março deste ano, a Defesa Civil da cidade registrou 580 deslizamentos e apenas quatro mortes.