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Como a arqueologia pode fortalecer os territórios indígenas na Amazônia

Fonte: Wikinotícias

25 de outubro de 2024

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A liderança do povo Tupari, em Rondônia, Maria Peika Tupari, luta pelo reconhecimento de uma região conhecida como Palhal, que foi excluída durante o processo de demarcação da Terra Indígena Rio Branco. Palhal é um território ancestral onde seus parentes viveram e faleceram.

“Aquela terra é nossa desde que meus pais saíram da floresta e foram levados para lá por seringueiros. A gente viveu ali por muito tempo. Eu nasci e me criei lá. Meus pais conquistaram aquela aldeia, mas ela acabou ficando fora do território demarcado”, lembra a liderança, em relato à reportagem da Amazônia Real.

Maria Peika Tupari foi uma das dezenas de lideranças convidadas para participar do encontro do projeto Amazônia Revelada, composto por arqueólogos que desenvolvem pesquisas, em parceria com populações indígenas e ribeirinhas, no Pará, Acre, Amazonas e Rondônia. O evento aconteceu em Manaus entre os dias 18 e 21, no Museu da Amazônia (Musa), localizado no Jardim Botânico da Reserva Adolpho Ducke, na zona norte de Manaus.

No território indígena do povo Tupari, os pesquisadores do projeto Amazônia Revelada encontraram um sítio arqueológico com características que remetem a um tabuleiro de xadrez. Essa descrição faz referência à disposição do terreno, dividido em áreas elevadas e áreas mais baixas, que formam um padrão semelhante ao de quadrados. Essas áreas mais altas e as depressões menores indicam uma modificação do ambiente, típico de ocupações humanas antigas. Nessas regiões, também foi encontrada a terra preta, tipo de solo fértil encontrado em várias áreas da Amazônia. A terra preta comprova a existência de grandes e complexas populações na região.

Com o apoio dos arqueólogos, o povo Tupari agora busca comprovar a sua ligação ancestral com Palhal, onde estão enterrados os pertences de seus antepassados, como as tradicionais panelas de barro. “A arqueologia na aldeia para nós tem um significado muito importante. A gente vive lutando, porque ali foi onde nós nascemos e vivemos por muito tempo. A arqueologia trabalhando junto com a gente vai ajudar a avançar mais na nossa luta”, afirma Maria Peika.

A liderança Osmar Maintaka Tupari trabalha há dois meses com os pesquisadores do Amazônia Revelada no mapeamento de vestígios arqueológicos na TI Rio Branco. Ele explica sua atuação no projeto: “Se a gente encontra um artefato ou algo assim, a gente bate as fotos e manda para eles. No mês passado, lá na aldeia, achei um pote bem grande. Bati foto, mandei para eles e eles pediram para tampar e não mexer”.

Para Osmar, a pesquisa pode proteger o futuro das crianças Tupari. “Onde a gente vive é um lugar muito bom e saudável. A pesquisa ajuda a preservar o futuro para as crianças existirem, e protegerem a natureza”, diz.

O que acontece com o povo Tupari mostra como a arqueologia contemporânea pode atuar como uma ferramenta de fortalecimento territorial das populações tradicionais amazônicas. Achados arqueológicos como as terras pretas e vestígios de grandes assentamentos, são provas da presença desses povos em suas terras ancestrais.

O Amazônia Revelada é um projeto de grande extensão financiado pela National Geographic e pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). A coordenação é do arqueólogo Eduardo Góes Neves, que atua na Amazônia há mais de 30 anos, com pesquisas realizadas em diferentes estados da região. Neves tem um trabalho notável na Amazônia Central. Ele foi um dos primeiros a coordenar pesquisas sobre terra-preta em áreas do entorno de Manaus, especialmente na cidade de Iranduba. Em 2022, lançou o livro “Sob os tempos do equinócio: oito mil anos de história na Amazônia Central”.

No encontro do projeto Amazônia Revelada em Manaus, os especialistas discutiram os resultados iniciais dos trabalhos de catalogação de materiais e vestígios arqueológicos nas regiões. Os pesquisadores utilizam a tecnologia do LiDAR (light detection and ranging) para sobrevoar florestas densas à procura de estruturas dos séculos passados, como estradas, valas e elevações artificiais, sinais da ocupação humana na Amazônia há milhares de anos, sem necessidade de escavação ou desmatamento da área.

Essa técnica se propõe a ser aliada ao conhecimento tradicional dos povos que vivem nos territórios mapeados. As pesquisas, que começaram no ano passado, têm sido dificultadas pela seca dos rios e pelas queimadas.

O projeto conseguiu dar seus primeiros passos para levantar a existência de elementos materiais ou inscritos na paisagem que formam patrimônios bioculturais. Em Altamira, no Pará, as investigações levaram ao achado de feições topográficas (relevos, depressões e elevações do solo) no Morro do Anfrísio, localizado na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio.

Em Rondônia, os pesquisadores visualizaram uma estrutura de pedra de um metro e meio, conhecida como Serra da Muralha, no distrito de Vista Alegre do Abunã, uma área onde o desmatamento avança de forma acelerada. O sítio arqueológico é composto por uma muralha de pedra e estruturas de alvenaria associadas a uma estrada.

Casos concretos relatados durante o encontro no Musa mostram que é possível estabelecer relações de igualdade nos estudos da arqueologia dentro de uma perspectiva de defesa territorial.

Para Eduardo Góes Neves, a arqueologia pode ser aliada fazendo reconhecimento de sítios que estejam em áreas de conflito, documentando territórios ocupados por populações tradicionais e indígenas, ou documentando sítios que já foram destruídos durante processos de invasões. Ele citou o caso relatado durante o encontro, envolvendo o povo Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, cuja área hoje denominada de ‘Burareiro’ é ocupada por invasores. Segundo Neves, imagens do LiDAR mostram áreas destruídas que até um tempo atrás era possível avisar pelo Google Earths.

“O mais importante é contribuir para reforçar ainda mais essas conexões com as populações desses territórios. Uma coisa importante é fazer o registro, patrimonializar esses sítios, a parte jurídica, o aspecto legal. Outra coisa importante é mostrar que existe uma presença indígena muito antiga nesses territórios. E que essa presença contribui para formar esses territórios que existem no presente. Isso é importante no âmbito da discussão sobre o marco temporal, que tenta apagar a presença indígena antes de 1988”, explica o coordenador do projeto Amazônia Revelada.

O pesquisador também destacou o processo de diálogo prévio com as populações cujos territórios são estudados. “Antes de fazer os sobrevoos, a gente tem feito consulta com os povos indígenas, com os moradores locais. Ribeirinhos, quilombolas. Apresentado e discutido. Feita uma consulta, requisitando autorização para fazer esses sobrevoos. A maioria a gente teve essa anuência”.

A conexão entre pesquisas e populaçoes locais pode ser aliada no enfrentamento de ameaças e violações de direitos destes territórios. Não é à toa, que todas as lideranças indígenas, quilombolas e ribeirinhas que participaram do encontro no Musa, em Manaus, relataram preocupações com os impactos dos grandes empreendimentos do setor econômico.

Vindos do sul do Amazonas, onde foi possível observar a existência de estruturas geométricas triangulares e circulares associadas a estradas, lideranças do povo Tenharim (autodenominados Pyri), que vivem na aldeia Marmelos, da Terra Indígena (TI) Tenharim/Marmelos em Humaitá, buscam ajuda do projeto de arqueologia para registrar os patrimônios que existem no seu território. O grupo de lideranças Tenharim também foi um dos participantes do encontro de arqueologia em Manaus.

A abertura da BR-230, a Transamazônica, aconteceu no auge da ditadura militar, nos anos 1970, e fez uma “cicatriz” na floresta amazônica quando cortou duas terras indígenas, dos povos Tenharim e Jiahui. Assolados pela exploração de sua mão de obra, pelas violências e doenças que dizimaram parte da população, os Tenharim também viram a destruição de sua memória ancestral. Apesar de o território ser demarcado desde 2002, eles ainda enfrentam as invasões, queimadas, desmatamento e o avanço da fronteira agrícola da soja, mas continuam resistindo.

“Durante essa década a gente sofreu com a passagem da Transamazônica e sofre até hoje dos impactos e pós-impactos. Em muitos locais sagrados, como cemitérios e terra preta, os maquinários passaram por cima”, disse Antônio Tenharim, presidente da Associação dos Povos Indígenas Tenharim (APITEM) e secretário municipal dos povos indígenas de Humaitá.

A liderança indígena ressalta a vontade do povo de registrar os pontos estratégicos de terra preta, locais sagrados nas aldeias e roçados antigos. A terra preta é um tipo de solo fértil enriquecido por materiais orgânicos e resíduos de atividades humanas, como restos de cerâmica e outros artefatos. A presença de terra preta é considerada um legado da ocupação prolongada por sociedades indígenas antigas na Amazônia.

Comprometidos em preservar esse patrimônio biocultural, os Tenharim querem que as áreas de terra preta sejam registradas como locais sagrados pelo Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan), para além da demarcação da terra.

No ano passado, as lideranças do povo assinaram um convênio com a Universidade de São Paulo (USP) e com o Museu Britânico, da Inglaterra, para a criação de um museu, o “Memorial Jiré: a história Tenharim através da cultura material de seus anciãos”, que vai funcionar na TI Tenharim/Marmelos. O museu é um espaço para manter viva a cultura e a memória ancestral Tenharim, e uma homenagem a Jiré, importante liderança já falecida.

Antônio Tenharim cobra que esse reconhecimento seja feito com participação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da associação que representa a comunidade, que também é responsável pela jurisdição do território.

“Nós vamos construir o museu indígena na aldeia central do povo Tenharim [Marmelos]. Esse museu vai ter uma importância muito grande, vai registrar o histórico do povo Tenharim, os nossos acessórios e os materiais, tudo que pertence ao nosso território. Esse museu vai ser um centro de arqueologia no território Tenharim”, manifestou a liderança.

O projeto Amazônia Revelada também pretende mapear e registrar os patrimônios arqueológicos junto ao Iphan, dando-lhes um status legal que impede sua destruição.

No Brasil, os sítios arqueológicos são protegidos pela Lei 3924/1961, também conhecida como Lei da Arqueologia, que estabelece que qualquer patrimônio arqueológico é de propriedade da União e não pode ser destruído ou alterado. A patrimonialização é uma forma de criar uma “camada adicional” de proteção a esses territórios, que já estão sob ameaça de pressões externas como o avanço do desmatamento e da exploração ilegal de recursos.

“Ao proteger os sítios arqueológicos a gente está protegendo os territórios onde eles estão, as áreas de floresta, de roçado ou mesmo de moradia das populações. A proteção ao patrimônio é uma maneira também de proteger esses territórios que são ocupados por processos tradicionais”, disse Eduardo Góes Neves.

O pesquisador relembra casos onde a preservação de sítios arqueológicos importantes não foi respeitada, como aconteceu no sítio do bairro Nova Cidade, na zona Norte de Manaus. A intervenção do governo do Amazonas na área, no início dos anos 2000, destruiu grande parte do patrimônio arqueológico devido à terraplanagem para a construção de um conjunto habitacional. Estima-se que as obras da Superintendência de Habitação e Assuntos Fundiários do Estado do Amazonas (SUHAB) destruiu cerca de 300 urnas funerárias.

As cestas, urnas, cuias, torradeiras ou assadeiras encontradas no sítio Nova Cidade, são considerados artefatos de cerca de 2 mil anos e provam como a região foi densamente povoada no passado. “Se esse sítio tivesse sido protegido, a gente poderia ter tido um parque, por exemplo. Uma área verde seria importante para todo mundo que vive aqui em Manaus”, disse.

As grandes secas de rios na Amazônia transformaram a paisagem amazônica, revelando registros históricos e arqueológicos desconhecidos. Pode ser uma boa notícia, pela relevância histórica e, em muitos casos, inédita. Mas esses achados podem vir acompanhados de preocupações pelo futuro incerto destes registros. Os eventos climáticos extremos, que estão cada vez mais frequentes, passaram a ser considerados nas discussões acadêmicas dos pesquisadores da arqueologia. Eles admitem que surgiram novos riscos a estas paisagens.

O tema das alterações climáticas também fizeram parte da agenda de discussões do encontro de arqueologia em Manaus. Durante o evento, populações ribeirinhas e indígenas apresentaram exemplos de surgimento de sítios visíveis durante a seca extrema, como é o caso de comunidades do município de Alvarães, no Medio Solimões, no Amazonas.

O arqueólogo Carlos Augusto Silva afirma que as mudanças climáticas são uma grande ameaça ao patrimônio natural amazônico construído durante cerca de 12 mil anos por pessoas, animais e o meio físico. Ele alerta que as mudanças climáticas são intensificadas pela intervenção (diferente do que ocorria entre os povos do passado) e que estas ações ameaçam a floresta e equilíbrio ecológico.

Ele explica que a existência da floresta remanescente (área com vegetação nativa primária), revela a importância da presença ancestral e atual dos povos originários para manter a vegetação amazônica de pé.

“Eu tenho andado bastante em sítios arqueológicos e percebido que se esses lugares estão próximos de um rio ou de um igarapé, esses povos da antiguidade não suprimiram a floresta da encosta. Era uma floresta preservada, como se fosse uma espécie de útero da vida, e eu penso que essas áreas de encosta eram áreas sagradas desses povos. Se eles não mexeram, é porque significava perder a casa. Os povos da floresta zelam, eles não destroem a floresta”, destacou Carlos Augusto.

Além do reaparecimento das gravuras nas rochas do sítio Ponta das Lajes, o baixo nível das águas no Amazonas fez surgir cerâmicas milenares em outro sítio arqueológico, dessa vez no município de Urucará. Os artefatos nunca antes vistos estão juntos a rochas que exibem gravuras rupestres, descobertas na seca extrema de 2023.

Com a intensificação da estiagem, o município de Tabatinga, que enfrentou a maior seca dos últimos 40 anos, viu reaparecer as ruínas do Forte São Francisco, construído no século 18. Submerso por décadas nas águas do rio Solimões, o local está inscrito no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e guarda objetos históricos, como peças de louça e munições utilizadas pelos militares na época em que o forte ainda estava em funcionamento.

Também foram encontrados os destroços de um navio naufragado no século 18, que emergiu no rio Madeira, na passagem do Pedral do Marmelo, no município de Manicoré.

Diante das mudanças climáticas, somadas ao desmatamento e às atividades predatórias como a mineração e o agronegócio, Eduardo Góes Neves alerta que o patrimônio arqueológico está em risco de destruição. “A gente está focando nas áreas que estão diretamente ameaçadas de destruição. Objetivo do projeto é usá-lo como uma ferramenta de proteção aos territórios que estão ameaçados”, explica.

Em suas projeções para o futuro climático no sítio da Ponta das Lajes, o arqueólogo Carlos Augusto Silva notou que, por conta das secas em nível extremo e frequente, está nascendo uma nova ilha no Encontro das Águas e é possível que daqui a cerca de 60 anos, esse fenômeno natural desapareça.

“Se isso acontecer, o encontro das águas vai ficar a quase 12 quilômetros de onde ele está atualmente, porque essa ilha está crescendo devido a baixa do rio e a terra não está sendo rolada. Essa terra está crescendo. Quando eu fotografei em 2023, a ilha tinha mais ou menos uns 2,5 metros, agora está quase com quatro metros, cresceu muito em um ano. É uma mudança muito brusca em pouco tempo”, observa.