COVID-19: na Europa, trabalhadores sazonais estão em risco

Fonte: Wikinotícias

17 de julho de 2020

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No final de junho, mais de 1.500 trabalhadores de uma fábrica de processamento de carne no oeste da Alemanha contraíram COVID-19. Ultrapassado o limite de 50 novas infecções por 100.000 habitantes, o confinamento (lockdown) da unidade e da aldeia vizinha foi posteriormente estendido a todo o distrito de Gütersloh, no estado da Renânia do Norte-Vestfália. Foi o primeiro lockdown nessa escala desde que a Alemanha havia relaxado as restrições impostas pelo governo federal em 10 de maio.

A maioria dos infectados no matadouro da empresa Tönnies eram trabalhadores migrantes da Bulgária, Polônia e Romênia. Eles são apenas algumas das milhares de pessoas dos estados-membro do leste da União Europeia (UE) que se dirigem à Alemanha todos os anos para trabalhar na indústria de alimentos do país.

Os epidemiologistas da Alemanha alertaram que essas instalações enormes, com pouca ventilação, linhas de montagem compactadas e superfícies metálicas frequentemente tocadas, constituem placas de Petri para a infecção. Eles notaram um número significativo de infecções por COVID-19 entre os trabalhadores de matadouros, que agora estão sendo testados em massa em pelo menos cinco estados alemães. No entanto, algumas pessoas, incluindo o primeiro-ministro da Renânia do Norte-Vestfália, Armin Laschet, aparentemente atribuíram a culpa aos próprios trabalhadores (Laschet recentemente "esclareceu" suas declarações, feitas em junho, após ser criticado).

O matadouro Tönnies agora estampa as primeiras páginas dos principais jornais da Alemanha; em algumas publicações e nas mídias sociais, tornou-se uma brincadeira popular afirmar que os porcos têm um lobby maior na Alemanha do que os trabalhadores que os matam.

Mas isso pode mudar. Em 20 de maio, o ministro do Trabalho da Alemanha, Hubertus Heil, apresentou uma nova lei para proibir a terceirização de mão-de-obra e a contratação de subcontratados, obrigando os matadouros do país a se comprometerem com padrões mínimos de trabalho para os trabalhadores migrantes.

Com esse surto, outro capítulo se desenrolou na discussão pública da Alemanha sobre a situação dos trabalhadores migrantes sazonais. Ativistas da Europa estão alertando que a pandemia do COVID-19 não apenas expôs essas desigualdades existentes, mas também as aprofundou.

Engasgar com aspargos

Na Alemanha, a chegada da primavera é tradicionalmente simbolizada pelos aspargos e morangos e de acordo com o costume mais recente, eles são colhidos por trabalhadores migrantes búlgaros e romenos - o setor agrícola da Alemanha contratou 300.000 trabalhadores migrantes apenas em 2019. Assim, quando o governo federal fechou as fronteiras do país em março devido à pandemia do COVID-19, o setor agrícola alemão temia que toneladas de produtos pudessem apodrecer nos campos, o que fez o governo alemão, em 2 de abril, concordar em abrir as fronteiras para 80.000 migrantes sazonais.

Quase imediatamente, milhares de romenos "atenderam à chamada". Em 9 de abril, imagens divulgadas nas redes sociais mostraram cerca de 2 mil pessoas amontoadas no pequeno aeroporto internacional de Cluj-Napoca, tentando embarcar para a Alemanha. Segundo a imprensa alemã, vários trabalhadores chegaram da região de Suceava, que tecnicamente deveria estar com as fronteiras fechadas devido ao coronavírus.

O que explicou a multidão de pessoas no aeroporto de Cluj naquele dia? Tanto em seu país quanto na Alemanha, esses trabalhadores sazonais foram acusados ​​de imprudência e estupidez por optarem por trabalhar no exterior durante uma pandemia. Ativistas e analistas de direitos humanos, no entanto, não criticaram os trabalhadores, mas perguntaram o que as empresas alemãs que se beneficiam de seu trabalho poderiam fazer para mantê-los seguros. Afinal, eles eram, nas palavras da direção da UE, "trabalhadores em situação crítica".

Para muitas pessoas na Bulgária rural, na Romênia e em outros países do leste europeu com poucas perspectivas de emprego, a migração sazonal de mão-de-obra é uma questão de sobrevivência. Polina Manolova, pesquisadora de migração da Universidade de Tübingen, diz que a falta de medidas proativas do governo búlgaro para oferecer apoio social aos trabalhadores intensificou a pobreza ou o medo de empobrecimento durante a pandemia. "São pessoas que foram demitidas recentemente, pessoas que não têm direito a nenhum subsídio de desemprego, porque há tantas condições que precisam cumprir. Muitas pessoas saem da rede de seguridade social, trabalham no setor cinza ou trabalham por conta própria. Sigo agências de recrutamento no Facebook e nunca vi um interesse tão grande em sair para trabalhar nesses empregos", disse.

Uma mulher explicou à Rádio Nacional da Bulgária em abril: "a razão é financeira para mim. Com 20 libras, posso fazer minhas compras semanais e não me privo de nada. Aqui nem posso comprar peixe toda semana. Vou embarcar em um voo charter organizado pela empresa em 30 de abril. Esta é minha nona temporada nesta fazenda. É uma fazenda de morango, framboesa, amora e mirtilo. Não estou preocupada se vamos ficar isolados lá, pois meus amigos me disseram que há um período de quarentena. Estamos em seis e vamos dividir um quarto e um banheiro".

Suas palavras também sugerem, como vários analistas explicaram ao Global Voices, que os salários não são a única explicação para a migração sazonal de mão-de-obra. Os ganhos também oferecem às famílias jovens a chance de economizar para o ensino superior de seus filhos ou para seu próprio uso, mas para os jovens das áreas rurais pode ser considerado um rito de passagem.

E este costume da vida rural na Romênia e na Bulgária não mudaria com a pandemia. Grupos do Facebook que recrutavam trabalhadores agrícolas no Reino Unido, Alemanha e Holanda estavam cheios de trabalhadores ansiosos solicitando conselhos sobre como ir para o exterior. Vários comentários em búlgaro expressavam preocupação com o coronavírus e medidas de distanciamento social, mas a maioria parecia indiferente, até mesmo em abril, quando a pandemia era muito pior em muitos países da Europa. "Com a quantidade de produtos químicos que eles usam por lá, não há como pegar COVID-19!" brincou um homem.

Vida nos campos

Quando trabalhadores sazonais chegaram à Alemanha, receberam orientações. Regulamentos da UE, bem como as instruções elaboradas pelo Ministério da Agricultura alemão, obrigaram-nos a fazer um exame de saúde completo antes de entrar no país, após o que precisam, ainda, se autoisolar por duas semanas. Somente vôos fretados foram permitidos, em vez das longas viagens de ônibus realizadas pela maioria dos migrantes em busca de trabalho todos os anos.

No entanto, muita coisa permaneceu igual. Trabalhadores sazonais ainda foram contratados e subcontratados por intermediários e não diretamente pelas fazendas ou matadouros onde trabalham. Recebendo formalmente o salário mínimo por hora alemão, de 9,35 euros, os trabalhadores reclamam que grande parte desse montante é, de fato, deduzido - nem sempre de forma transparente - para cobrir o custo de passagens, alimentação e acomodação, que consideram precários. Dominique John, coordenadora de projetos da Faire Mobilität, uma ONG que luta por condições de trabalho justas para trabalhadores migrantes na Alemanha, disse ao Global Voices que se notou um aumento de reclamações dessa natureza nos últimos meses.

Fundamentalmente, essa relação precária de emprego não mudou durante a pandemia. Como um agricultor alemão disse ao tabloide nacional Bild em abril: "eu não posso empregar alemães. A maioria dos alemães não está acostumada a trabalhar nos campos por horas a fio, pois eles rapidamente reclamam de dores nas costas. O aspargo deve ser colhido todos os dias e os alemães exigem um ou dois dias de folga por semana, o que não ajuda na época da colheita. Os romenos trabalham até nos domingos e feriados".

De acordo com um documento de 2 de abril elaborado pelo Ministério da Agricultura da Alemanha, visto pelo Global Voices, os migrantes sazonais precisavam receber equipamento de proteção individual (EPI) e poderiam trabalhar e viver a uma distância segura, distanciados uns do outro. No entanto, à luz dos padrões usuais de acomodação para esses trabalhadores, que são acomodados em quartos compartilhados, pesquisadores e ativistas como Manolova duvidam que medidas sanitárias ainda mais rigorosas sejam aplicadas.

Em 11 de abril, um romeno que trabalhava como apanhador de aspargos no estado de Baden-Württemberg, no sul, foi encontrado morto e havia testado positivo para o coronavírus. Acredita-se que ele tenha entrado no país no dia 20 de março. No mesmo mês, trabalhadores romenos de Suceava que trabalhavam na mesma fazenda escreveram a seguinte carta a um jornal local, o Monitorul de Suceava, reclamando das condições de trabalho durante a pandemia. O subempreiteiro que os enviara para lá não estava mais respondendo às ligações telefônicas. "Escrevo para você porque estamos em um grande dilema. Estamos no local em que aquele homem de Suceava morreu. Não há meios de proteção. Existem pessoas auto-isoladas que trabalham sozinhas nos campos. Hoje, uma equipe inteira de pessoas estava isolada. Há uma mulher que se sente doente e que está esperando o médico chegar desde a manhã, mas ninguém veio vê-la. As pessoas separam aspargos uma ao lado do outra. Temos máscaras que usamos há cinco dias. Eles fecharam os portões do complexo e colocaram guardas ali e depois foram até as pessoas nos campos e disseram que, se a polícia viesse, teriam que dizer que estava tudo bem. Nós queremos ir para casa. Nós não queremos morrer aqui".

Há motivos para acreditar que o distanciamento social no trabalho melhorou nos últimos meses mas, à luz da relação de trabalho, permanece uma pergunta fundamental: "o que acontece se um trabalhador agrícola adoecer na Alemanha"? No ano passado, a Agência Federal de Emprego declarou que quase 70% dos trabalhadores sazonais agrícolas na Alemanha estavam marginalmente empregados em “mini empregos” de curto prazo e, portanto, não se qualificavam para o seguro de saúde e as garantias de segurança social alemãs. Além disso, o período de contribuição para trabalhadores sazonais para o sistema de seguridade social foi aumentado de 70 para 115 dias durante a pandemia, aumentando a situação de precariedade.

Problema se alastra pela Europa

Os exemplos são alemães, mas ilustram uma história que toda a Europa compartilha.

Na Grã-Bretanha, a questão do trabalho temporário de trabalhadores do leste europeu ficou enredada devido ao Brexit. Temendo problemas com a colheita de frutas, o governo britânico lançou, em maio, uma campanha chamada "Escolha a Grã-Bretanha", apelando ao patriotismo como a solução da questão, nume período em que as fronteiras estão fechadas. Poucos britânicos, no entanto, aderiram, e, assim, exceções para entrada de estrangeiros foram rapidamente implementadas para trabalhadores migrantes sazonais, para grande desgosto de alguns partidários do Brexit. Para os pró-europeus, a recusa de seus oponentes em trabalhar nos campos foi a evidência mais forte de sua hipocrisia, de que o "cosmopolitismo europeu idealizado" estava fora de alcance. Nas entrelinhas, dizem os especialistas, um debate mais holística sobre os direitos trabalhistas dos migrantes sazonais, no entanto, se perdeu.

Valer Simion Cosma, um antropólogo que trabalha com migrantes na área rural da Romênia e no Museu de História e Arte de Zalău, espera que a pandemia possa aumentar a conscientização sobre a economia de trabalho segmentada da Europa: " gestão das cadeias de suprimentos de alimentos frescos no agronegócio transnacional da Europa depende de mão-de-obra barata, não sindicalizada e gerenciada em particular por países da Europa Oriental com baixos salários. [...] Enquanto na teoria, os trabalhadores da europa oriental desfrutam das proteções legais concedidas ao trabalho formal pela legislação da UE, a pandemia de COVID-19 expôs e, em alguns casos, aprimorou suas condições de trabalho frequentemente exploradoras", disse.

Para Hein de Haas, professor de sociologia da Universidade de Amsterdã e diretor do Instituto de Migração, o papel dos migrantes sazonais em um período de fronteiras fechadas ressalta o fato de que a autarquia completa se tornou uma fantasia: "há uma demanda crônica de mão-de-obra em toda a Europa, a a atual situação mostra isto. Você pode ter ou não o Brexit, mas ainda precisará desses trabalhadores, e há poucos lugares na Europa, além da Romênia, onde você pode consegui-los. [...] Também não é verdade que se os salários e as condições fossem melhorados, os trabalhadores locais fariam esse trabalho - devido a seu status social. Talvez os alunos façam isso, mas depois que se formarem, não o farão mais. Os políticos podem dizer que querem que os desempregados façam esse trabalho, mas o problema é que colher morangos e aspargos não é uma tarefa fácil! Requer acordar muito cedo e ser muito motivado e, na verdade, requer também algumas habilidades. Você não encontrará isso frequentemente entre outros trabalhadores. Provou ser uma ilusão completa que você pode fazer isso sem habilidades. Estamos falando de setores muito específicos - a agricultura é uma, mas restaurantes, lavanderias, serviços domésticos e a indústria hoteleira são outras.

Para o filósofo romeno Vasile Ernu, a pandemia coloca seu país num lugar desconfortável na economia globa. "O recurso humano que resta à Romênia não é mais altamente qualificado, ou melhor, bem remunerado, mas um recurso não-qualificado conhecido como "mão de obra barata". Barato ou mal pago. Tão barato que é vendido “sazonalmente” e “atacado” - quase como toras. Mas se estas toras retornam ao seu país de origem na forma de mercadorias processadas nas fábricas, para serem vendidas a um preço mais alto, os cidadãos de "mão-de-obra barata" retornam ao seu país mais cansados, doentes e mais velhos, mesmo que tenham gnahado um pouco mais de dinheiro. O novo projeto do nosso país é o neo-feudalismo. O estado não diferencia entre toras e seres humanos", esclareceu.

Quando as fronteiras foram fechadas em toda a Europa, alguns dos trabalhadores sazonais do continente viram-se rotulados como "essenciais" por Bruxelas e Berlim. Foi um reconhecimento lisonjeiro, mas que, implicitamente, convidou a fazer uma comparação com seus direitos trabalhistas pouco lisonjeiros e sua existência precária e vulnerável.

Se o mundo pós-pandemia voltar ao "normal", cabe aos europeus perguntar mais uma vez sobre como nossa normalidade ressurgiu e que custos teve para quem - e o custo para quem trabalha sem ser visto e a ilusão de que isto é normal podem continuar para sempre.

Fontes