Fé e ecologia: como líderes religiosos incorporaram crise ambiental ao discurso moral
21 de fevereiro de 2025
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Um estudo sociológico, premiado como melhor tese de Ciências Humanas da USP em 2024, investigou como lideranças católicas e evangélicas no Brasil incorporaram a pauta ambiental em seus discursos, entre 1970 e 2024. Embora houvesse consenso sobre a importância da preservação ambiental, as instituições religiosas reinterpretaram o tema sob uma perspectiva moral. O discurso tradicionalmente antropocêntrico, que coloca o ser humano no centro da criação e enfatiza a salvação da alma no “outro mundo”, vem sendo adaptado para uma abordagem ecológica, que reforça a responsabilidade com a natureza no presente.
Além disso, “a pesquisa sugere que o investimento massivo da Igreja Católica na pauta ecológica nos últimos anos deriva de uma percepção de que essa pauta é estratégica para reforçar sua relevância pública e fortalecer sua posição no cenário religioso, uma vez que a instituição vem perdendo cada vez mais adeptos para as Igrejas Evangélicas”, explica o sociólogo Renan William dos Santos, autor do estudo feito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Segundo o pesquisador, a Igreja Católica se destacou no engajamento ambiental devido à sua estrutura hierárquica consolidada e apoio do Vaticano, sede da instituição que fica em Roma, Itália. Em 2023, por exemplo, o Papa Francisco publicou a encíclica Laudate Deum (documento oficial do papa com diretrizes direcionadas às lideranças e fiéis católicos), reafirmando a mensagem de Laudate Si, de 2015. No documento, o pontífice destaca a urgência da crise ambiental, a necessidade de mudanças no modelo econômico e o papel da humanidade na preservação da natureza.
Já entre os evangélicos, o estudo mostra que a fragmentação das igrejas em diversas denominações dificultou a coordenação de ações mais robustas sobre o meio ambiente, embora o tema fosse recorrentemente mencionado de forma positiva em congregações e escolas dominicais. “Uma queixa comum dos líderes evangélicos é a de que seus irmãos de fé se juntavam facilmente ao coro dos que lamentam a destruição ambiental, mas raramente aceitam avançar para a discussão e enfrentamento coletivo dos fatores estruturais que levam a essa destruição”, diz.
O estudo envolveu entrevistas com padres, pastores, bispos e lideranças de movimentos ecológicos que promoviam ou se opunham à agenda ambiental, além de investigação em literatura científica e materiais de divulgação, como panfletos e publicações.
- Interpretação moral da crise ecológica
O estudo aponta que, para católicos e evangélicos, a crise ambiental é vista menos como uma questão de gestão de recursos, avanços tecnológicos ou modelos econômicos, e mais como uma consequência do afastamento da humanidade dos planos de Deus. Nesse contexto, líderes católicos e evangélicos recorrem a “ecodiceias” — releituras das doutrinas sagradas e dos planos divinos — para explicar o atual desequilíbrio ambiental, tornando o tema religiosamente significativo nas igrejas. “Essas interpretações compartilham a premissa de que Deus criou um mundo em perfeito equilíbrio, que seria mantido caso a humanidade não tivesse cometido o pecado original. Dessa forma, a própria existência de desequilíbrios ecológicos passa a ser vista como consequência direta da ação humana pecaminosa, ao passo que o aumento contemporâneo de tais desequilíbrios resultaria da expansão do pecado no mundo moderno”, relata o sociólogo.
No Vaticano, tais raciocínios que conectam desequilíbrios “internos” e “externos” já foram inclusive usados, segundo Santos, para “ecologizar” certos tabus tradicionais, como o controle artificial da natalidade, a eutanásia, a união homoafetiva e outros comportamentos que passaram a ser tratados ao mesmo tempo como antinaturais e antiecológicos.
- Ecojustiça
O sociólogo explica que no Brasil, entretanto, esse enfoque moralizador teve historicamente um viés mais social, relacionando cuidados com o meio ambiente e desigualdade social. “Em vez de focar comportamentos individuais, a preocupação recaía sobre a pobreza e a miséria”. Dessa forma, a pauta ambiental era associada ao compromisso com o próximo, reforçando a necessidade de combater desigualdades estruturais para proteger tanto as pessoas quanto o planeta. O pesquisador explica que “essa abordagem é conhecida entre os pesquisadores do tema como ‘ecojustiça’, um conceito que defende que não há como cuidar do próximo sem cuidar do meio ambiente”.
Santos diz que, além da “ecojustiça”, há outras duas perspectivas que vinculam o cristianismo à proteção ambiental. A primeira é a “ética da zeladoria”, que sustenta que a humanidade de fato ocupa uma posição privilegiada na criação (uma perspectiva antropocêntrica geralmente criticada nos círculos ambientalistas), mas tal posição de privilégio viria necessariamente atrelada à responsabilidade de cuidar do mundo. O ser humano seria, portanto, um zelador da Terra, alguém que tem certa autoridade mas precisa cuidar de algo que não lhe pertence. Por fim, há a “ecoespiritualidade”, que propõe uma conexão mais profunda entre fé e meio ambiente, enfatizando que a natureza e os demais seres que a habitam formam uma irmandade com os seres humanos em adoração ao criador, que as ultrapassa mas também habita em todos os seres.
- Negacionistas católicos
O estudo também revela a forte articulação de grupos católicos tradicionalistas no negacionismo climático, com influência no Brasil e no cenário internacional. Um dos exemplos mais marcantes foi a organização do evento Vozes Alternativas pela Associação Tradição, Família e Propriedade (TFP), realizado no Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, como resposta à Eco-92 — a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.
“O evento reuniu representantes autoridades e cientistas céticos do mundo inteiro em relação ao aquecimento global, consolidando assim uma rede internacional de oposição às pautas ambientais”, avalia Santos.
- Desafios para engajamento ambiental
Segundo o pesquisador, lideranças católicas e evangélicas encontram vários tipos de obstáculos para consolidar o engajamento ambiental no interior das igrejas, sendo os principais deles a falta de “mão de obra” para apoiar e trabalhar nas iniciativas que são propostas; a falta de saliência dessa temática na competição pela atenção dos fiéis em comparação com temas como combate ao aborto, ideologia de gênero etc.; a falta de canais institucionais para efetivar os discursos ecológicos em ações práticas de relevância comunitária.
Santos afirma que as iniciativas ambientais (campanhas anuais, eventos comemorativos, produção de materiais temáticos, criação de páginas em redes sociais, plantio de árvores, mutirões de limpeza, entre outras) promovidas por grupos religiosos no Brasil costumam ser pontuais e de curta duração, desaparecendo sem deixar impactos muito significativos nas estruturas institucionais.
Fontes
[editar | editar código-fonte]- ((pt)) Ivanir Ferreira. Fé e ecologia: como líderes religiosos incorporaram crise ambiental ao discurso moral [inativa] — Jornal da Universidade de São Paulo, 18 de fevereiro de 2025. Página visitada em 21 de fevereiro de 2025
. Arquivada em 20 de fevereiro de 2025
![]() | Esta notícia é uma transcrição parcial ou total do Jornal da Universidade de São Paulo. Este texto pode ser utilizado desde que seja atribuído corretamente aos autores e ao sítio oficial. Veja os termos de uso (copyright) na página do Jornal da USP |