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“Casas sim, barracas não’’: o projeto habitacional surgido com a Revolução dos Cravos

Fonte: Wikinotícias
Bairro SAAL da Meia Praia Duna em Lagos

5 de outubro de 2024

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Portugal, 1974: 8.754 milhões de pessoas habitavam o país mais ocidental da Europa, cerca de um quarto eram analfabetas; 38 em cada 1.000 crianças morriam no primeiro ano de vida. Tudo sob o regime do Estado Novo, vigente desde 1933.

Cinquenta anos após o 25 de Abril daquele ano, que marcou o fim do regime, o país transformou-se a todos os níveis. O golpe de estado da chamada Revolução dos Cravos abriu muitas portas para mudanças impulsionadas pelo povo nas ruas.

Em 1º de maio, no primeiro Dia do Trabalhador após o 25 de Abril, aconteceu a maior manifestação da história de Portugal, um gatilho para a tomada das ruas pelas classes desfavorecidas. A população começou também a organizar-se nos bairros. Entre os lemas da época: “Casas sim, barracas não” e “As casas são do povo. Abaixo a exploração”.

No Porto, habitantes dos bairros camarários reuniram-se exigindo o fim dos regulamentos que lhes privavam de liberdade. Em Lisboa, moradores de bairros de lata reforçaram a luta para exigir habitação condigna e ocuparam prédios sociais acabados, mas não distribuídos. Mais de 2.000 casas foram ocupadas nas cidades que concentravam mais indústrias, como Lisboa, Porto e Setúbal.

Apesar de não existiram dados concretos sobre quantas pessoas não teriam habitação - ou em quais condições viviam as que tinham onde morar – a pesquisa do I Recenseamento Geral de Habitação: continente e ilhas, realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) em 1970, aponta a existência de 31.110 ”barracas e outras” pelo país. O arquiteto José António Bandeirinha, na tese O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974, estimou que um quarto da população residente em Portugal vivia em espaços sem quaisquer condições de habitabilidade. A esta questão urgiam medidas do 1º Governo Provisório e dos que lhe sucederam.

Em 6 de agosto de 1974, menos de quatro meses após a revolução, foi consubstanciado formalmente o SAAL – Serviço de Apoio Ambulatório Local – num despacho assinado pelo Ministro da Administração Interna, Manuel da Costa Brás, e pelo secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, Nuno Portas.

Por ser um despacho, porém, o SAAL teve um frágil poder legislativo para resolver os problemas de habitação em Portugal. Não obstante, possibilitou a construção de 75 bairros e, dinâmicas realmente participadas numa dualidade de poderes entre as entidades públicas, como o Fundo de Fomento da Habitação (FFH), profissionais e estudantes de arquitetura, assistentes sociais e a população que viria a habitar nos bairros.

José António Bandeirinha diz que o Secretário de Estado, Nuno Portas, no momento em que o FFH começou a delinear o seu plano de suporte às populações que poderiam ser apoiadas pelo SAAL, procedeu a uma “sistematização de acções e prioridades que reflectiam uma certa concentração pragmática em torno das experiências que ele tão bem conhecia, particularmente as sul-americanas e as do norte de África”.

Desta forma, é possível estabelecer a influência de experiências de arquitetura com preocupação e dimensão social que tiveram lugar na América Latina a partir da década de 1960 na SAAL. Destas são exemplos as iniciativas de cooperativismo no Uruguai, os bairros projetados por Germán Samper Gnecco na Colômbia e, com mais notoriedade, o PREVI – Proyecto Experimental de Vivienda, no Peru.

Neste país, o presidente Fernando Belaúnde Terry, arquiteto de profissão, começou a executar um plano que visava também resolver o problema das “barriadas”, que proliferavam em Lima devido a um enorme êxodo rural para a capital. Através de um concurso internacional, foram selecionados(as) treze arquitetos(as) internacionais, que participaram no PREVI juntamente com arquitetos(as) locais.

Com o golpe de estado de 1968 no Peru, e a instauração de uma ditadura militar, as preocupações sociais deixaram de estar na ordem do dia e das 1.500 habitações previstas só 500 foram construídas, todas elas inauguradas em 1974. A experiência portuguesa

O processo SAAL permitiu a construção de 76 bairros apesar de 170 projetos elaborados: 17 através da Delegação SAAL/Norte; 34 pela Delegação SAAL/Lisboa e Centro-Sul e 24 por meio da Delegação SAAL/Algarve. Maioritariamente, os concelhos intervencionados situam-se no litoral de Portugal. Mais importante do que a quantidade, o que importa realçar são as dinâmicas neste programa de habitação.

Como se poderiam construir bairros que respeitassem e incorporassem as características sociais e económicas da população? As Brigadas Técnicas constituídas para a construção dos bairros SAAL eram compostas não só por arquitetos(as), mas também por assistentes sociais, com papel relevante de caracterização da população.

Esta articulação entre diversos atores de mutação social provocou um choque de visões sociais distintas. Para além disso, sempre que possível os bairros SAAL foram construídos nos lugares onde existiam os bairros de lata para preservar as dinâmicas fortalecidas ao longo do tempo e que foram cruciais para resistir ao poder autoritário do Estado Novo.

Outra possibilidade que o SAAL previu foi a autoconstrução. Sempre que as populações considerassem adequado, poderiam ser elas próprias a construir as suas habitações.

Além disso, a luta pela habitação em Portugal após o 25 de Abril foi também uma luta feminina. Como defende a pesquisadora Lia Antunes no artigo ”O meu sonho? Ter uma casa. Pensar sobre habitação, cidade e cidadania das mulheres no Portugal Revolucionário (1974-1976)”, as mulheres foram protagonistas no projeto e na discussão do direito à habitação.

Apesar de o SAAL ter perdido força após o golpe militar de 25 de Novembro de 1975, que pôs fim ao processo revolucionário iniciado no ano anterior, e ter sido revogado em 1976, é um exemplo de uma política pública, que incorporou a participação de forma real e pioneira naquele momento e que não voltaria a ser executada em Portugal.

Em 1976 decorreu o primeiro Fórum Habitat organizado pela ONU (Organização das Nações Unidas) na cidade de Vancouver, Canadá, dedicado aos “estabelecimentos humanos”. Portugal decidiu participar dando a conhecer o SAAL através do documentário “Habitat – um desafio”, do realizador português Fernando Lopes, um dos nomes do novo cinema português cuja obra com mais notoriedade é “Belarmino” (1964).

Esta produção do Centro Português de Cinema resultou numa curta-metragem documental centrada na situação das carências habitacionais portuguesas, como o SAAL estava a dar os primeiros passos para resolver a questão da habitação e o contexto sociopolítico da “autoestrada no final da Europa”, como definiu o cientista político Philippe Schmitter.

Habitação, um protesto atual

A Constituição Portuguesa de 1976, apesar das suas sete revisões, continua a estabelecer a habitação como direito — Direito N.º 65. No entanto, entre a teoria e a prática as portas abertas pelo SAAL ainda estão muito longe de ser estarem fortalecidas pelas fundações corroídas pela especulação imobiliária.

Na última década, Portugal tem visto os preços das casas aumentar. O Eurostat, que reúne dados e estatísticas da União Europeia, aponta que os preços de habitação tiveram aumento de 7 porcento no primeiro semestre de 2024, em comparação ao mesmo período do ano passado, enquanto a média da União Europeia foi de 1.3 porcento.

O coordenador da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA) admitiu que o número de sem abrigos duplicou entre 2018-2022.

Em 2023, decorreram duas grandes manifestações nas ruas sobre o tema da habitação em várias cidades de Portugal: 1º de abril e 30 de setembro. Já neste ano, no dia 27 de janeiro, as ruas das principais cidades foram ocupadas pela pauta e um novo protesto foi convocado para o fim de setembro.